quinta-feira, 18 de março de 2010

Cunha & amigos

O João é uma pessoa esforçada. Desde cedo lhe incutiram a ideia de que o sucesso só se obtém com muito trabalho e por isso, ao longo da vida, sempre procurou dar o seu melhor em todas as actividades em que se viu envolvido. Estudou, trabalhou e voltou mais do que uma vez aos bancos da escola para aprofundar conhecimentos. Ficou até tarde no trabalho a fazer o que ninguém queria fazer, obrigando a família a muitos sacrifícios. Um dia, este funcionário público viu um jovem sem qualificações e sem qualquer experiência passar-lhe à frente.

Um pouco mais nova do que o João, a Ana já perdeu a conta aos processos de selecção pelos quais passou. Apesar de ter um currículo irrepreensível e de ter o perfil pretendido em muitos dos anúncios a que tem concorrido, continua à procura de trabalho. Normalmente “morre na praia” na parte da entrevista, a fase onde a contestação aos resultados acaba em “águas de bacalhau”.

O João e a Ana têm em comum o facto de não terem cunhas, nem amigos com cargos importantes, nem qualquer ligação partidária, o que se revela um verdadeiro problema num país em que o “factor c” ainda é crucial.

No sector privado, quem contrata e mantém incompetentes metidos por cunha sente no bolso as consequências destas decisões, o que tem à partida um efeito dissuasor. Estas situações são muito mais graves no sector público, uma vez que está em causa a gestão do dinheiro de todos nós. Não é preciso ser muito perspicaz para perceber que há anúncios para a função pública que são “fatos à medida” para quem já lá está ou para os “amigos”. Nesses casos, estamos perante autênticas farsas, que se mantêm graças a uma complacência quase generalizada. Há quem diga que vai concorrendo por descargo de consciência, na esperança de um dia acertar nos que não estão viciados.

O mais escandaloso é mesmo que o erário público sirva para pagar favores de natureza política. A seguir a cada acto eleitoral assiste-se à deprimente dança das cadeiras, incluindo em cargos que não deveriam ser de nomeação política. E assim se criam perigosas redes tentaculares, com tudo o que isso tem de pernicioso.

[Publicado no Diário do Minho, 6 de Março de 2010]

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